quinta-feira, março 27, 2008

Carta à ministra da educação com conhecimento

A Sua Excelência a Srª Ministra da Educação

Às/Aos Presidentes dos Sindicatos de Professores

Às minhas Colegas e aos meus Colegas

Às/aos Alunas e Alunos, Mães e Pais e demais População Portuguesa

Aos Órgãos da Comunicação Social


Fada? Fada boa? Fada má?

A fadar lindo rosto à educação? A dar-lhe, olhando-a, morte a prazo? A salvá-la in extremis pelo beijo redentor dum príncipe?

A abraçar o saber multiplicando números numa sempre mais extensa prole documentada e responsável, livre, pois, para uma assumida cidadania e efectivo bem estar e progresso? Ou a abraçar o número dividindo saberes numa violentada prole singular e estrictamente subalternizada?

Tenho vindo a ter notícia de si não só pelos jornais. Também li o documento que lavrou como solução para os problemas que diz detectar no ensino. E também ouvi na íntegra a entrevista que foi para o ar na Antena 2.

Então o fogo político que abrasa V.Ex.cia não tem carácter, não tem natureza? Será que pensa que a simples assunção de funções políticas é banho lustral a transformar a pergunta acima numa pura discussão do sexo dos anjos?

A Srª Ministra é igual a um Presidente de uma escola aqui em Ponta Delgada, que nos queria obrigar a fazer entrar os alunos por ordem do Livro de Ponto, com chamada à porta da sala, “nem que percam dez minutos, até ir tudo ao sítio”, justificando tal humilhação generalizada, a professores e a alunos, com a afirmação, aleatória e genericamente falsa, de entrarem aos troncos e barroncos dentro das salas de aula! A verificar-se tal coisa, por que não actuou ele sobre o prevaricador ou prevaricadora, e/ou turma? Da mesma maneira, pergunto-lhe: por que não actuou ou actua o Ministério sobre esse tal professor ou tais professores que, indignada, diz, estão no 10º escalão sem terem mais de dois anos de efectivo trabalho escolar? Pergunto-lhe: como justifica tal cobardia, ou, se preferir, tal ineficácia da Administração? É falta de regime legal? Ou é usar uma situação que a própria Administração proporcionou para responsabilizar os docentes do que é da responsabilidade da Administração, para isolar os docentes junto da opinião pública, para mais facilmente fazer cair os docentes nas malhas da humilhação e da exploração assalariadas, liquidando práticas pré-capitalistas no ensino, é certo, mas em vez de o fazer elevando ao novo patamar as relações humanas que por todo o lado se desenham, fá-lo tentando pôr os professores no lodo das inquinadas relações de produção e de distribuição de quem, tudo o leva a crer, lhe enquadra a acção e lhe paga o serviço?

As suas determinações parecem chantilly no bolo que Roberto Carneiro começou no tempo em que era Primeiro Ministro o actual Presidente da República. Não espanta por isso que este olhe com tão bons olhos o desempenho de V.Ex.cia. É no tempo daquele Ministro da Educação que se fez ponto final na estratégia abraçada nos finais de sessenta e princípios de setenta, assim como nos desenvolvimentos pontuais pós 25 de Abril de 74. Ponto final a quê? Ponto final, em primeiro lugar, a “veleidades” científicas da aprendizagem centrada no sujeito que percepciona e organiza conhecimento. Com Roberto Carneiro a educação das percepções do próprio e a educação pelas próprias percepções sofre um rude golpe. A afirmação do grande matemático que foi Sebastião e Silva “uma vez que a máquina vem substituir o homem progressivamente em trabahos de rotina, não compete à escola produzir homens-máquina mas, pelo contrário, formar seres pensantes, dotados de imaginação criadora e de capacidade de adaptação em grau cada vez mais elevado” é preterida em favor, de novo, de novas remessas de saber já feito, agora sob modernas formas industrializadas, normalizadas, uniformizadas, tudo pronto e rápido para o deificado consumo. E ponto final ainda em quê? Ponto final, ainda, na criação superiormente não prevista de saber. A partir de final de oitenta ganha corpo não só, pois, a aversão institucional ao sujeito criador das suas próprias aprendizagens, como também institucionalmente se foram desenhando fossos e paliçadas e organizando as milícias de controlo da mercadoria saber, de controlo dos criadores e fruidores de saber e de controlo da interacção dos sujeitos criadores e fruidores de saber, isto é, nós todos sob o cada vez mais estrito controlo de uns tantos de entre nós que a tal se prestam à luz do sufragado direito divino por obra e graça do marketing eleitoral, da premência ou premências da chamada, mas nunca explicada, “economia”, e da coacção das armas de fogo.

Por que é que V.Ex.cia, sendo formada, e ainda por cima em Sociologia, não explica a razão dos seus actos no contexto das páginas, que ora se viram, da nossa história? Por que não usa do saber, que tem obrigação académica de dominar, para ajudar a massa da população portuguesa a superar os transes próprios de uma época de crise, ao invés de agravar os factores da arbitrariedade, da obscuridade, do oportunismo, da cobardia, do conflito, da violência, da ineficácia, do descontentamento? Se quer melhores desempenhos científicos, por que faz depender estes de imposições admnistrativas e não, ao contrário, estas daqueles? Se quer ciência a produzir-se, por que razão destrói os grupos científicos nas escolas? Por que faz depender planos de aula, decisões pedagógicas e didácticas, avaliações específicas, de Coordenadores de Departamento com formações científicas as mais aleatórias e das mais díspares áreas disciplinares? O que diria se eu a obrigasse administrativamente a dar um parecer sobre o diagnóstico do médico com quem a pusesse a trabalhar, e a obrigasse ainda, administrativamente, a decidir tecnicamente da correcção ou da incorrecção do plano que ele traçara para o paciente, e vice-versa, o médico a falar de cátedra do que V.Ex.cia, na sua especialidade, formulasse ou fizesse? E que faria se a conservação do seu emprego dependesse dessa ignomínia, e se em cumpri-la dependesse o pão para a boca das suas filhas? Isto não é vil? Não é brutal? Mas isto é o que se está passando no ensino em Portugal! É tudo um sonho feio? Estamos perante uma performance surrealista? Se ama a ciência, por que intimida os que a criam? Se ama a ciência, por que razão a uns obriga ao uso de rendas e de folhos, dragonas e até cacete, e, a outros, só a parra e, amarrados, quantas vezes, mais, só, pés e mãos lhes deixa? Afirma-se ferida com os 400.000 jovens que não terminaram, nos últimos dez anos, o Secundário, e os também não sei quantos milhares que abandonaram o Básico: já pensou um minuto na responsabilidade que o Ministério da Educação devia assumir, e na explicação que devia facultar ao país, ao dar prioridade e validação aos seus “grupos” de trabalho (ou melhor, a alguns dos seus “grupos de trabalho”, também pagos pelo erário público, é bom que não se esqueça, pois a outros, talvez por mais estruturados e honestos, o ministério fez e continua a fazer orelhas moucas) em detrimento da voz dos que no terreno dão atenção aos problemas, e corpo ao que superiormente modelam? Já pensou no porquê do que se vive no ensino? Nunca ouviu a frase, muito usada entre técnicos, “o material tem sempre razão”? Sabe, por exemplo, por que temos em Portugal resultados tão maus em Matemática? É simples de enunciar: é porque, anquilosadamente, deve dizer-se, o Ministério, e uma massa significativa de mangas de alpaca do ensino, continuam a tentar subverter uma preclara linguagem num depósito de linguagens passadas a estereótipo e embaladas em preconceitos, e, mais, tão grave como a precedente deturpação, irradicando das percepções do sujeito a sua utilização, impondo-lhe um discurso a que o sujeito da aprendizagem de um modo geral não acede senão à custa da perpetuação, de novo, do estereótipo, do preconceito e da incompreensão quase generalizada. E há que acrescentar ainda: em finais de oitenta, intencionalmente ou ignorantemente, estou ainda para saber ao certo, o já por mim referido seu homólogo Roberto Carneiro irradicou do ensino uma questão decisiva para o sucesso ou para o insucesso, especialmente nos jovens, de qualquer aprendizagem: a questão da passagem das operações concretas para as operações formais. Eu tenho detectado nos últimos anos, com tendência para se agravar, muitos alunos no início do terceiro ciclo e até no Secundário, com grandes dificuldades em aceder ou mesmo sem ainda terem acedido a operações formais, e, quando aparentemente parece que sim, o fazem numa quase só formalidade mimética sem outra consistência interna senão a da mera repetição mecanizada. Esses alunos, ao serem confrontados com questões que não coincidam com o que levianamente ou brutalmente foram coagidos a memorizar, ficam incapacitados ou com acrescidas dificuldades para resolverem problemas ou situações novas (que é no essencial o que vai continuar a acontecer com o estafado “reforço” de tempo e de agentes que a Srª Ministra defende em simultâneo com a repressão sobre tudo e todos que conduzam ao repensar de metodologias e de programas).

V.Ex.cia, como Socióloga, sabe bem que as opções organizativas são elas mesmas tão ou mais expressivas que os enunciados escritos ou verbalizados que as justificam ou camuflam.

A relação que V.Ex.cia estabelece com os professores (e todos os demais sujeitos nas escolas, alunos incluídos) não se centra na criação de saber e na decorrente satisfação dos envolvidos. A preocupação centra-se, sim, na apropriação de saber para satisfação de uma parte, de uma pequena parte, deve sublinhar-se, dos envolvidos.

E isso é por demais evidente com o permitido e clamoroso desperdício de saber e de criação de saber que ocorre no sistema de ensino (desperdício, aliás, que parece continuar a ser um traço dominante da política portuguesa em muitas ou quase todas as frentes). Evidente ainda com a tentativa de V. Ex.cia, Srª Ministra, ao querer criar, sob o mais estrito controlo das Administrações Central e Regionais, multiplicadas oligarquias, Escola a Escola, conforme consta do “regime legal” que preconiza para a função docente, num exclusivismo de palavra e de salário a fazer inveja ao “Estado Novo” ou ao “Nacional Socialismo”, ainda, pelos vistos, para alguns, de boa memória. Não é só a toda poderosa arbitrariedade da hierarquia administrativa, é também agora, e em força, o exercício da repressão que se advoga e organiza contra tudo e contra todos que lhe contrariarem exacção.

É nesse contexto, creio, que se percebe também as alterações que V.Ex.cia pretende prosseguir no que respeita às relações da Administração Central com os Sindicatos. Face a um previsível aumento do descontentamento entre os docentes, uma parte dos dirigentes sindicais, dirigentes que até hoje aprovaram quase todos quase tudo na generalidade, para gáudio da Administração, ao não concordar agora com o remate da obra a que todos deram corpo, deixa literalmente de ter qualquer valor, pelo que é perfeitamente compreensível que não queira suportar-lhe sinecuras. Compreensível também que queira gerir os recursos financeiros por forma a alimentar ilusões e nalguns casos mesmo, mesmo que sem intenção, substanciar suborno naqueles que deviam era ter a mais clara compreensão dos acontecimentos e fazer a mais firme defesa dos seus iguais. Ao Estado reclama-se antes de tudo e acima de tudo, justamente, creio, uma relação do mais total respeito para com os Sindicatos, assim como do mais total respeito também para com quantos neles trabalham, sem intimidação, sem chantagem, sem prejuízo dos direitos pessoais, incluindo reduções ou licenças para o trabalho sindical, contagem integral para efeitos de tempo de serviço, ADSE, e demais inerências profissionais.

Grato por eventual atenção.

Com os melhores cumprimentos,

Ponta Delgada, 21/27 de Junho de 2006

Pedro Albergaria Leite Pacheco

Professor na Escola Secundária Antero de Quental

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