segunda-feira, março 10, 2008

Desmistificação do conteúdo e da forma das políticas educativas do ME

Ainda que mal pergunte: existe algum país democrático onde um Governo
tenha desejado e conseguido instituir uma reforma em qualquer das suas
áreas vitais sem a participação maior ou menor dos seus protagonistas?

Sou e sempre fui professor a tempo inteiro e dedicação exclusiva e
ainda tenho a paixão por trabalhar na sala de aula com os meus alunos.
Sou também pai de uma aluna que frequenta a escola pública. Nunca fui
militante de nenhum partido (embora não consiga imaginar uma
alternativa ao sistema democrático partidário) e não me move, por
isso, como diz invariavelmente o primeiro-ministro, sempre que ocorre
uma manifestação contra a sua política, uma intenção de luta
partidária ou sindical, como se tal comportamento fosse um crime de
lesa-democracia. Fiz a minha formação académica superior (nove anos:
licenciatura, estágio no ramo educacional e mestrado) na Universidade
de Coimbra e considero-me defensor do rigor e da exigência na
educação. É justamente em nome desses valores que desejo aqui
desmistificar o conteúdo e a forma das políticas educativas do
Ministério da Educação (ME).

1. Esta redentora ministra da Educação optou por legislar em catadupa
sem nunca ouvir os professores. Desautorizou as escolas e execrou os
seus docentes, desprezou os pareceres do consagrado Conselho Nacional
de Educação e abjurou as opiniões de todas as associações
profissionais de professores. Ainda que mal pergunte: existe algum
país democrático onde um Governo tenha desejado e conseguido instituir
uma reforma em qualquer das suas áreas vitais sem a participação maior
ou menor dos seus protagonistas? Alguém acredita que seja possível e
legítimo implementar em Portugal reformas, por exemplo, nos sectores
da Saúde e da Justiça à revelia das opiniões de médicos, enfermeiros,
juízes e advogados?

2. Este ME, porque desprezou as opiniões dos professores, engendrou,
unilateralmente, um sistema de avaliação de docentes kafkiano,
perverso e impossível. É kafkiano porque não são claros os objectivos
e os critérios de avaliação basilares exigidos e, por isso, as grelhas
de avaliação instituídas são tão labirínticas e herméticas que
transformam o mais meritório e excelente professor (avaliador e
avaliado) num frustrado, taciturno e, nos casos mais patológicos,
prepotente escriba. É perverso porque, tratando-se de um modelo de
avaliação arrevesado, desgastante e controverso, deveria primeiro ser
discutido, experimentado e corrigido, e não iniciado de modo impetuoso
a meio de um ano lectivo; é perverso porquanto põe professores de
áreas disciplinares diferenciadas e em muitos casos com competências
científicas e pedagógicas inferiores a avaliar os seus pares; é
perverso porque põe ao mesmo nível e condiciona a avaliação de
professores de áreas disciplinares tão heterogéneas como Educação
Física, Educação Tecnológica, Introdução às Tecnologias da Informação
e da Comunicação, Educação Moral e Religiosa Católica, Matemática,
Ciências, Português ou História pelas classificações académicas dos
seus alunos; é perverso porque admite que a avaliação dos professores
possa ser condicionada por pais e encarregados de educação, os quais,
salvo honrosas excepções, mal conhecem os professores, raramente vão
às escolas e quase sempre responsabilizam os docentes pelos erros dos
filhos e deles próprios; em última análise, é perverso porque, a médio
prazo, vai, inevitavelmente, criar nas escolas um ambiente de forte
crispação e extorquir aos docentes ainda mais tempo e tranquilidade
para aquilo que eles têm a obrigação de fazer melhor: preparar aulas e
leccionar. É impossível porque muitos docentes titulares terão tantos
professores para avaliar que não irão conseguir conciliar no seu
horário lectivo as aulas leccionadas nas suas turmas com as aulas
assistidas nas turmas dos professores avaliados; é impossível porque
não existem inspectores disponíveis com formação científica adequada
para avaliar os professores titulares avaliadores de todas as
disciplinas.

3. Este ME engendrou, unilateralmente, um novo diploma de gestão
escolar que limita a democracia directa nas escolas públicas. Na
prática, suspeito que a autonomia das escolas continuará a não passar
de mera retórica. Entretanto, aumentam perigosamente os poderes do
Director (antigo presidente do Conselho Executivo), que deixará de ser
votado em eleições directas maioritariamente pelos seus pares. O
Conselho Pedagógico passa a ser nomeado pelo Director e terá apenas
poderes consultivos, facto que pulveriza o princípio do primado das
questões pedagógicas e científicas sobre as questões administrativas
(será esta a estratégia admirável forjada pelo ME para abrir caminho
às tais lideranças fortes?!). Os professores perdem a maioria no
Conselho Geral (antiga Assembleia de Escola) - que, entre outras
funções, elege o Director - em nome de uma suposta abertura inovadora
das escolas às autarquias e à comunidade local. Isto apesar de todos
sabermos que esta velhíssima e até hoje quase impraticável aspiração
esteve sempre contemplada no sistema ainda em vigor: com efeito, a
ainda actual Assembleia de Escola já integra vários elementos da
autarquia e da comunidade local que, como a realidade tem demonstrado
à saciedade, são em regra incapazes ou estão indisponíveis para
participarem de forma mais empenhada e criativa nas escolas. Por outro
lado, os agrupamentos de escolas passam também a depender do poder dos
autarcas, os quais agem muitas vezes movidos por interesses
arbitrários e são não menos vezes desprovidos de sensibilidade, de
cultura e de conhecimentos científicos e pedagógicos para interferirem
de forma francamente positiva nos destinos destas instituições.

4. O novo estatuto do aluno decretado quase a meio do ano lectivo
determina que, em nome do combate ao insucesso escolar, os estudantes
dos ensinos Básico e Secundário não reprovem por faltas
injustificadas. Doravante, estes irão poder comparecer nas aulas
quando lhes aprouver e depois fazer sucessivas provas de recuperação
nas disciplinas onde forem acumulando excesso de faltas. A ideia é
peregrina, e é o mínimo que apetece dizer: desresponsabiliza os alunos
e os seus encarregados de educação; potencia actos de indisciplina e
de total absentismo que constituem já o drama cada vez mais
insuportável de tantas escolas; responsabiliza e desautoriza os
professores e até parece não compreender que tais alunos só providos
de inspiração divina poderão reunir condições mínimas para alinhavarem
as respostas às questões enunciadas nas provas atrás mencionadas.

A maior parte da legislação produzida por este ME tem apenas um
propósito: aumentar rapidamente o sucesso educativo através da
burocratização sistemática das escolas (como se educar significasse
burocratizar); manter os alunos todo o dia fechados em escolas vedadas
e, em demasiados casos, nada aprazíveis, bem como converter estes
locais em "fábricas" capazes de produzir em massa e com menos dinheiro
um sucesso educativo formatado e desalmado - como se o complexo
sistema educativo das escolas portuguesas pudesse ser decalcado por
decreto pelas cartilhas tecnocráticas que determinam a organização de
uma qualquer empresa capitalista...

Mas, como é depois possível que a melhoria do sucesso educativo
vislumbrado nas estatísticas possa coincidir com o sucesso científico,
educacional, técnico e artístico intrínseco obtido por cada aluno?
Decididamente, esta é uma questão que os amanuenses do ME, a sua
infalível ministra e o rigoroso engenheiro Sócrates desprezam e
devolvem aos professores. De facto, esse não é um problema digno de
ocupar os espíritos dos governantes portugueses, os quais vivem
tragicamente divorciados do mundo real e são desprovidos de qualquer
imaginação e sentido prospectivo.

Entretanto, enquanto estes se entretêm com as suas diáfanas jogadas
políticas, os professores lá vão continuando a desenvolver
estoicamente o seu trabalho de campo em condições cada vez mais
insuportáveis - turmas mais numerosas; alunos mais desmotivados e mal-
educados; apoio psico-pedagógico insuficiente prestado aos alunos
necessitados; professores com horários de trabalho formais mais
repletos, mais níveis, mais turmas, mais alunos e menos horas semanais
para leccionar a cada turma; burocracia inútil e esquizofrénica
(torrentes de reuniões, mais grelhas, matrizes, relatórios, actas,
planificações, planos educativos e uma panóplia de outros documentos
inenarráveis para elaborar); nenhum tempo para pensarem e planificarem
as aulas; nenhum tempo para actualização científica; tempo e paciência
esgotados para descodificarem a forma, o conteúdo e o alcance
metafísicos das sucessivas leis evacuadas pelo ME; serões perpétuos
passados a elaborarem e corrigirem resmas de fichas de avaliação;
ambiente escolar mais arrebatado e, em certos casos, violento;
indisponibilidade de tempo para a família.

Quando estará este Ministério da Educação disponível para reflectir e
debater com os professores as questões de fundo e disfunções da escola
pública (currículos, programas, práticas pedagógicas, a obscena
burocracia em que as escolas soçobraram, qualidade e caminhos do
ensino profissional, obviamente, processos de formação e avaliação de
professores, etc.)? Até quando estarão os professores dispostos a
consentir que a arrogância e o folclore pseudo-reformista das
políticas educativas deste Governo abastardem irremediavelmente as
suas vidas e penhorem o futuro do País?

Diria para terminar, à maneira de síntese, que esta política de
educação imposta num tempo de crise desperta-nos para uma máxima
fundamental e urgente (antes que seja tarde...): é preciso educar a
política ("esta politica"... escrita em minúscula), é urgente que os
políticos sejam educados. A política em democracia não é uma arte do
poder, à maneira maquiavélica, mas é um exercício de rigor e de
diálogo, é uma vivência de cidadania.

Luís Filipe Torgal
Professor de História do 3.º ciclo do Ensino Básico
Em educare.pt

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