sexta-feira, novembro 21, 2008

A vida no primeiro ciclo

Mais grave do que a burocracia …

Mais grave que a burocracia é:


· O mau estar entre os docentes, a prepotência, a subserviência, a suspeição e o medo…

· A humilhação pedagógica…

· A proibição de intervir, de propor, de participar no processo de construção da escola…

· A obrigação de ter que cumprir ordens sem sentido, há muito tempo ultrapassadas…


Mais grave que a burocracia… é o cansaço e o vazio, a perda da alma!


De facto, assim não se pode ser professor, porque ser professor é sobretudo ensinar a aprender, ensinar a descobrir e, mais do que tudo, é ensinar a sentir a vida, a lutar por objectivos, a fixar metas e tentar atingi-las, é ensinar que todas os passos positivos da nossa Humanidade foram o resultado de imensas tentativas e de imensos erros.

Ser professor é combinação de arte com sabedoria e com afectividade… Como quantificar esta profissão em grelhas competitivas?

Por isso, se fala muito da avaliação. Porque, de facto, ela é como que o laço que ata toda uma política educativa, onde o lema é “aprender a competir” e não “aprender a construir”.

Neste processo de luta – em que a esmagadora maioria dos professores se encontra envolvida – são as escolas do segundo e terceiro ciclos, bem como as do ensino secundário, que sempre aparecem em primeiro plano.

Por que não se fala no primeiro ciclo – antigo ensino primário – bem como nos jardins-de-infância?

Marçalo Grilo – o ministro da Educação que impôs aos professores o modelo de autonomia de gestão das escolas – afirmou, nessa altura, que se as escolas do primeiro ciclo ficassem integradas em agrupamentos verticais, seriam a cauda do cometa.

A vida só tem verificado esse prognóstico.

Estas escolas, mesmo quando muito grandes, com um número de docentes entre vinte e trinta, são sempre muito pequenas ao lado das dos outros graus de ensino.

Logo, quem sempre se afirma são os docentes das escolas numerosas. Experimentássemos colocar num Conselho Pedagógico uma esmagadora maioria de representantes dos docentes do antigo ensino primário e dos jardins-de-infância, e veríamos como seria apagada a posição dos que representassem os outros graus de ensino.

No entanto, nos jardins-de-infância e no primeiro ciclo do ensino básico – a cauda do cometa – as consequências das políticas do ME são bem nefastas, a avaliação é a mesma, e com uma agravante: quem manda nas escolas do agrupamento é um professor do segundo ou do terceiro ciclo, que desconhece por completo as especificidades desses níveis de ensino. Em consequência, podem ser dadas como ordens para cumprir as maiores aberrações pedagógicas; como não há discussão, nem participação, e como a “autonomia” é sinónimo de impor de cima para baixo, pois se cumpra. Não importa se há desacordo, se há frustração e até revolta. O (ou a) presidente manda, o professor cumpre, através de outros professores: os coordenadores de estabelecimento ou os coordenadores de nível, ou aqueles que foram destacados para avaliar os colegas. Notemos que toda esta gente deixou já, em muitos agrupamentos, de ser eleita. Todos são nomeados, para exercer esses tão famigerados como ambicionados “cargos”, estando a transformar-se numa nova casta, dentro de cada escola.

Num contexto destes, como pode ser desenhado um projecto pedagógico, ou trocadas opiniões sobre o desenvolvimento de uma actividade, ou satisfeito um pedido de ajuda, perante as dificuldades sentidas numa sala de aula?

Quem vai aprender com quem? Quem vai partilhar com quem, quando se sabe que a visa seleccionar apenas alguns?

Na gíria capitalista, é frequente ouvir-se dizer: “O segredo é a alma do negócio”. É isso que este modelo de escola quer impor aos docentes e aos alunos?

Não é necessário perder-me em mais considerações. Os relatos que vou apresentar falam por si, provando, sobretudo, que:


· Mais grave que a burocracia, é o clima sem alma da escola desfigurada, sem democracia.

· Os professores do primeiro ciclo são, talvez, os mais laminados e os que mais sofrem as consequências da política da competitividade adaptada à escola.


Que saudades eu tenho de tirar as minhas dúvidas!


São 26 alunos, do 3º e 4º ano. Três com necessidades educativas especiais.

Os meus tempos de trabalho com eles são de 45 minutos, entrecortados pelas AECs, pelos intervalos e o tempo para o almoço. Este, também não é sempre à mesma hora.

Com um horário assim – fragmentado e variável ao longo da semana – como é que é possível levar estas crianças a interiorizar hábitos temporais de organização, a adquirir rotinas diárias, algumas delas com dificuldades acrescidas nestas áreas, com é o caso da criança autista que faz parte da turma?

Coloquei este problema à vice-presidente, que é do 1º ciclo; logo, tem obrigação de saber as especificidades deste grau de ensino; esta respondeu-me: – “O que é que tu queres? A presidente exige assim.”

Querem obrigar-nos a trabalhar para a nossa avaliação e não para o processo de aprendizagem e sucesso dos nossos alunos.

Esta presidente esquece-se que os professores, quando saem da escola, trazem consigo os seus alunos. Esquece-se que não somos apenas professores, temos que ser educadores, mães, técnicos de serviço social. Tenho que levar todos os dias o pequeno-almoço para um menino, que vem sempre em jejum.

Eu sou pela exigência, pelo trabalho rigoroso. Penso que aqueles que forem baldas têm que ser chamados à atenção e têm que modificar o seu comportamento, para bem dos seus alunos da escola e deles próprios. Mas essa avaliação necessária, é aquela que se faz a partir do cumprimento dos nossos deveres profissionais, da nossa participação nas reuniões de preparação e organização das aulas, nos trabalhos que delas decorrem. É uma avaliação que tem a ver com a responsabilidade do trabalho, para ajudar os alunos a desenvolver-se em todas as dimensões.

O que é que isso tem a ver com irem vasculhar-me os meus planos diários? Amanhã vou faltar porque o meu filho vai ser hospitalizado para uma intervenção cirúrgica. Como é meu hábito, deixei os planos de aulas preparados para a colega que me vai substituir. Pois vieram vasculhá-los, para ver se estavam feitos e como estavam feitos. Será que não sou uma profissional? Não têm confiança em mim?

O mais grave é que esta função é desempenhada por alguém que, há menos de sete anos, entrava na minha sala e ficava embasbacada com o meu trabalho, pois nem sequer sabia como se fazia trabalho de texto.

Outro dia, fui à sede do Agrupamento para tratar de um assunto. Fiquei à porta da sala do Conselho Executivo. Então, ouvi estas palavras da presidente: “Esta avaliação é mesmo para doer, porque vai servir para mandar muita gente embora”.

É por isso que reina o medo. Todos se sentem intimidados.

Que saudados que tenho do tempo em que fazia perguntas à Teresa, para tirar as minhas dúvidas, para crescer no meu trabalho com os alunos. Como eu aprendi nesse tempo. Como me sentia bem!

Sim, era o tempo em que a turma desta colega – então com um 2º ano de escolaridade – entrosava, no plano curricular da sua turma, os projectos apresentados pela Coordenação das bibliotecas municipais de Oeiras, e a que aderiam as escolas. Na nossa escola trabalharam todas as turmas do 2º e 3º anos de escolaridade. Em conjunto com os artistas do MUS-E, num trabalho coordenado e dinamizado pela equipa da biblioteca escolar. Nessa altura, os alunos da Joana desenvolveram e consolidaram a sua leitura inicial, a partir do livro “O Rouxinol do Imperador”, de Hans Christian Andersen. Todos liam, escreviam, cantavam, desenhavam e encenavam aquela história. Com a intervenção dos artistas do MUS-E – cujo projecto de actividade entrosava também no plano curricular de cada turma e no plano de Actividades da Escola – o resultado de toda actividade das crianças foi transformado numa deliciosa opereta.

Não é assim que se pode aprender português, música e, ao mesmo tempo, ficar com um gosto imenso pelas leituras de Anderson, bem como pelos valores humanistas que delas transpiram?

É a pensar nesta Escola que já aconteceu, a pensar nestas crianças cujo futuro nós queremos ajudar a abrir, que se arranja força para não desistir.

(Depoimento de uma docente do 1º Ciclo, Outubro de 2008)


Ensino fragmentado, num período de desenvolvimento global


É um conceito adquirido, e até agora não contestado, que o processo de desenvolvimento de uma criança é global – sobretudo na primeira, segunda e terceira infâncias, período que abarca o jardim-de-infância e o primeiro ciclo do ensino básico. Portanto, o seu processo de aprendizagem deve ser organizado de forma globalizante, com as disciplinas articuladas, tanto quanto possível, no quadro de um projecto curricular, no qual é muito importante a existência de temas aglutinadores, a partir dos quais de possam desenvolver todas as práticas – da língua portuguesa às áreas de expressão, do estudo do meio à matemática e à música.

É partindo desta compreensão que a Lei de Bases do Sistema Educativo consagra o regime da mono-docência, para o primeiro ciclo do ensino básico. Assim cada turma é assegurada por um só professor – o professor titular da mesma – que deverá ser coadjuvado por professores com formação específica noutras áreas, como a Música ou a Educação física.

Não pode compreender-se, assim, que o horário de uma criança deste nível de ensino seja, em muitos agrupamentos, organizado em blocos de 45 minutos, assegurados por um professor ou animador de cada uma das actividades agora denominadas de enriquecimento curricular (AECs), fora de qualquer acompanhamento ou articulação com o plano curricular da turma, da responsabilidade do professor titular da mesma. Chega a acontecer que as disciplinas de Português e Matemática estejam contempladas num horário depois das 15 horas.

Como os professores não têm o direito de contestar estes horários – altamente perniciosos para uma criança de seis ou oito anos de idade –, nem esta soma de disciplinas, cada uma com o seu professor, mesmo aberrantes, estão a ser postos em prática.

Será bom para uma criança desta idade começar na escola às 9 horas e acabar por ter aulas de Português e Matemática no período do dia que deveria ser ocupado com actividades de fruição, tão livres quanto possível?


O paradoxo

De um lado os quadros interactivos, do outro a discriminação para a visita a um museu


As escolas do primeiro ciclo – entregues desde há muito às autarquias, em termos de edifícios, de equipamentos e de manutenção, bem como de serviços sociais – foram sempre o parente pobre do sistema de ensino. Assim, estas áreas já estavam muito dependentes dos critérios, bem como dos recursos, de cada concelho. Também muitos dos recursos existentes, tal como as práticas, estavam muito ligadas à capacidade de organização e de iniciativa das suas equipas educativas. Foi através das dinâmicas destas, que se conseguiam muitos recursos, e, por vezes, autênticos milagres de gestão, permitindo pôr em prática projectos inovadores.

No concelho de Oeiras, os docentes destas escolas conseguiram que a autarquia assumisse a distribuição de verbas específicas que garantissem a aquisição de tinteiros para as impressoras de todas as salas de aula.

Hoje, existem escolas onde os tinteiros têm que ser comprados e pagos pelos professores.

Os docentes organizavam pequenas cooperativas com os seus alunos, nas suas salas de aula. Eram os alunos que as geriam, que recebiam o dinheiro, faziam os registos e toda a contabilidade. Com estas pequenas quantias – que estas crianças aprendiam a gerir, ao mesmo tempo que adquirindo laços de grupo e de entreajuda – era possível ter um pequeno fundo de maneio para comprar um material para fazer uma prenda ou, mesmo, garantir alguns euros para pagar a viagem de um ou dois alunos que não podiam pagá-la.

Há agrupamentos onde esta prática foi, pura e simplesmente, proibida. Ao mesmo tempo, não existe margem de liberdade para que um professor ou equipa de professores se bata por conseguir as verbas necessárias que o Agrupamento não está em condições de garantir. Aliás, mesmo que tivesse essa margem, não tinha tempo, pois cada um está completamente absorvido de tarefas pós-lectivas, sobretudo com o seu processo de avaliação, tal como os professores dos outros graus de ensino.

Conclusão: as crianças não podem realizar visitas de estudo ou, então, vão umas e ficam outras, porque não puderam pagar alguns euros.

Estas situações, altamente discriminatórias, acontecem no concelho de Oeiras, em contradição com a existência de quadros interactivos, até em jardins-de-infância do mesmo concelho.


Onde está a liberdade de ensinar?


Existem escolas onde os planos de aulas são da responsabilidade da Coordenadora de nível. Esta elabora-os, e todas as outras colegas os põem em prática, com os mesmos calendários. Se, porventura, uma das docentes entendeu que a matéria – planeada para um determinado dia – precisa de ser mais trabalhada, para passar ao patamar seguinte, ela não o poderá fazer. Não é permitido escrever num sumário: “consolidação da matéria da aula anterior”, em nome de que todos terão que ir ao mesmo passo.


A frustração


Nunca trabalhei tanto… para os frutos serem tão poucos! Os Conselhos executivos não nos dão valor. Desde que acabaram com as equipas do Ensino especial, a nível concelhio, e cada professor do Ensino especial passou para a dependência de cada Agrupamento, perdemos o norte.

(Professora do ensino especial)


O cansaço e a desilusão


Primeiro do que tudo, tenho que defender a minha saúde física. Não tenho condições para me preocupar mais com o que está a passar-se na escola.

Quando os pais perceberem que a escola não pode ser apenas um armazém com o desenho muito bem feito para que o resultado formalmente dê certo, quando a escola bater no fundo, então todos verão o que tem estado a ser feito.

(Professor doutorado, que escolheu o primeiro ciclo por opção)


A prepotência


“Para o próximo ano lectivo vou poder desmanchar este núcleo. Cada professora vai para a escola do Agrupamento que eu entender.” (O núcleo é o conjunto de docentes de uma das diversas escolas do primeiro ciclo agrupadas no mesmo Agrupamento. Como os professores estão unidos naquela escola, é preciso dividi-los).

“Quem manda sou eu; vocês não têm senão de obedecer.”

(Afirmações de um vice-presidente de um Agrupamento do concelho de Oeiras)


Ignorância audaciosa


“Para avaliar um professor de música qualquer um serve.”

“Sou pela ditadura. A democracia só serve para atrapalhar.”

“Pensem bem antes de irem à manifestação. Cuidado com a avaliação!”

(Afirmações de uma presidente de um Conselho executivo)


Carmelinda Pereira (CDEP)

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