terça-feira, novembro 18, 2008

Desobediência ao pesadelo burocrático

O pesadelo burocrático e a desobediência à lei

11.11.2008 - 16h20

“O facto de os cidadãos estarem em geral dispostos a recorrer à desobediência civil

justificada é um elemento de estabilidade numa sociedade bem ordenada, ou seja, quase

justa”


John Rawls, Uma Teoria da Justiça


Tenho 48 anos e sou professor do ensino secundário há quase 26. Sou professor titular

de Filosofia, não estou sindicalizado, não me recordo de ter faltado ao trabalho, mesmo

em dias de greve, e não costumo participar em manifestações – nem sequer participei nas

duas últimas grandes manifestações de professores, se bem que tenha pena de não o ter

podido fazer. Nunca me passou pela cabeça ter outra actividade profissional, mesmo

ganhando mais do que os 1850 euros que, após todos estes anos, recebo no final do

mês.

Sei que para ensinar bem os meus alunos tenho de continuar a estudar, a ler e a

aprender. Como costuma dizer um amigo meu, Desidério Murcho, para se ensinar bem

até à letra C é preciso dominar as matérias até pelo menos à letra M: é preciso um grande

à vontade e um bom domínio do que se ensina para se antecipar dificuldades dos alunos,

para se responder a dúvidas inesperadas, para se encontrar o exemplo certeiro, para

indicar as leituras adequadas, etc. Isto exige uma grande preparação e uma actualização

permanente do professor, além de um ambiente de trabalho tranquilo e estimulante. Até

porque são as deficiências científicas que originam, na maior parte da vezes, as situações

pedagogicamente mais desagradáveis.

Infelizmente, os escassos estímulos que ainda poderiam existir nesse sentido parecem

pertencer ao passado. As escolas transformaram-se, de há dois anos para cá, numa

balbúrdia constante e num verdadeiro pesadelo burocrático em que ninguém parece

entender-se. E, com muita tristeza minha, vejo os livros de filosofia que todas as semanas

encomendo na Amazon ou outras livrarias acumular-se sem quase ter tempo para os

folhear. Preparar aulas decentemente é algo que também deixei de fazer, caso contrário

nem sequer vida familiar poderia ter. Não fosse o caso de os alunos estudarem por um

manual que conheço de cor – porque sou um dos seus autores – e as aulas seriam um

completo improviso. Comparar o que se tem passado nas escolas nos últimos dois anos

com a barafunda gerada com o atraso da colocação de professores no tempo do ministro

David Justino é como comparar um episódio infeliz com a própria infelicidade. E o ministro

David Justino caiu por causa disso.

Creio poder dizer, sem qualquer exagero nem arrogância, que conheço melhor do que a

senhora ministra o que se passa nas escolas, pois há 25 anos que passo a maior parte

da minha vida nelas. Ora, nunca, mas mesmo nunca, houve tanta confusão e um

ambiente tão pouco adequado ao ensino e à aprendizagem como o que se verifica

actualmente.

Perguntar-se-á: o que ando então a fazer o tempo todo para deixar de preparar as minhas

aulas como deve ser? A resposta poderia ser dada até pelo meu filho, apesar de ainda

ser criança: além das aulas, passo os dias em reuniões intermináveis para entender o

sentido do terrorismo legislativo com que se tolhem e intimidam os professores. Na

verdade são muito mais as horas que tenho gasto a reunir por causa da avaliação do que

com aulas. E o pior ainda nem sequer chegou. Como avaliador de oito colegas, terei de

inventar mais 36 horas para assistir a aulas suas, além das reuniões preparatórias que

tenho de fazer com cada um deles e dos quilos de papelada para preencher. De resto, na

minha escola os professores irão passar o ano a assistir às aulas uns dos outros, pois

somos 165 professores, o que dá cerca de 500 aulas assistidas por ano. Além disso, terei

de preparar tudo para o meu avaliador – um colega de Economia que não tem culpa de

nada e que fará certamente o seu melhor – poder assistir às minhas aulas de Filosofia.

Que o novo modelo de avaliação é inútil e ineficaz já o provou definitivamente, sem o

querer, a senhora ministra. Diz ela repetidamente que esta avaliação é absolutamente

necessária para a qualidade do ensino e para a melhoria dos resultados. Porém, anunciou

com grande pompa ao país que os resultados melhoraram no último ano, o que acabou

por ser reforçado com a divulgação dos resultados dos exames nacionais. Só que esta

apregoada melhoria da qualidade e dos resultados verificou-se ainda antes de o modelo

de avaliação produzir qualquer efeito. Logo, fica provado que a avaliação não é uma

condição necessária para a melhoria da qualidade e dos resultados. O que leva então a

ministra a dizer que a avaliação é absolutamente necessária?

Os responsáveis pelo actual ministério da educação parecem, talvez inconscientemente,

querer pôr em prática o cenário tenebroso descrito por George Orwell em "Mil Novecentos

e Oitenta e Quatro", em que a catadupa de despachos, decretos regulamentares,

documentos orientadores, ordens de serviço, instruções superiores, recomendações, etc.,

frequentemente incoerentes – vale a pena dizer que acumulo em casa mais de mil

fotocópias sobre avaliação, que me foram entregues na escola –, são a tradução quase

literal do "Big Brother is watching you" da 5 de Outubro. A obsessão do ministério por

controlar tudo e todos até ao mais pequeno detalhe está bem patente no modelo de fichas

de avaliação que impõe às escolas e aos professores (parece que a ideia é a de que,

entre tanta coisa pedagogicamente inane, sempre há-de haver uns quantos aspectos em

que o avaliado vai falhar, de modo a não atrapalhar as escassas cotas disponíveis para

progressão na carreira). E o mais irónico é que, quando se encontram incoerências e

impasses nas instruções oriundas do ministério, a ministra deixa o problema para as

próprias escolas com o argumento de que lhes quer dar autonomia na construção dos

seus instrumentos de avaliação. Não é, pois, surpreendente que os professores se sintam

desorientados, cansados, chantageados e até insultados. Isso acaba naturalmente por se

reflectir na sua prática lectiva e os alunos notam bem a diferença quando o professor dá

as aulas cansado.

Mas o pior de tudo é que o modelo de avaliação fabricado na 5 de Outubro não vai

permitir distinguir os bons dos maus professores, ao contrário do que a senhora ministra

alega. Talvez seja até pior do que a completa ausência de avaliação, premiando

arbitrariamente alguns dos maus e castigando cegamente muitos dos bons. Se assim não

fosse, que razões teriam os bons professores que desfilaram na manifestação de sábado

para lá estarem? Ou será que os mais de cem mil são todos maus ou simplesmente

estúpidos? Os professores sentem-se compreensivelmente ameaçados porque o modelo,

além de burocrático, como convém ao Big Brother, obedece a uma espécie de

pensamento único pedagógico: há um dogma pedagógico subjacente a que todos têm de

aderir, tal como se emanasse do Ministério da Verdade orwelliano. Esse dogma é o da

pedagogia do eduquês: são os resultados a qualquer preço, é a inovação a martelo, são

as “estratégias de ensino-aprendizagem” como se o professor fosse o aprendiz (também o

é, mas noutro sentido). Enfim, é a avaliação do portfólio e dossiê do professor para ver se

ele tem o seu caderno diário em ordem, infantilizando uma actividade em que, pelo

contrário, se exige autonomia e auto-confiança.

De resto, não é preciso muita atenção para ser confrontado com essa novilíngua do

eduquês que, de há muitos anos para cá, tem caracterizado o Ministério da Verdade. Só

que agora passou a ter uma força imparável, pois vai ser a destreza no uso dessa

novilíngua a determinar se o professor é dos bons ou dos maus. Esta é, sem dúvida, a

avaliação do pior eduquês em todo o seu esplendor. É um enorme passo para a asfixia

intelectual dos professores e para a sua menoridade profissional. E é a negação da

desejável diversidade pedagógica, transformando os professores em meros instrumentos

de uma cadeia de produção em série e impedindo os alunos de se enriquecer no contacto

com diferentes estilos e metodologias.

Mas o que realmente importa no desempenho do professor é, respeitando os alunos e os

seus direitos, ensinar-lhes e ajudá-los a aprender o que é suposto aprenderem,

recorrendo às concepções pedagógicas que muito bem se entender. É relativamente fácil

apurar se o professor soube realmente ensinar e se os alunos conseguiram realmente

aprender, independentemente da metodologia usada e das concepções pedagógicas em

jogo, desde que os seus alunos realizem no final do percurso exames bem concebidos. E

se se ponderarem os resultados dos exames comparando-os com a média de cada

disciplina nas respectivas escolas, estamos muito próximos de um sistema de avaliação

muito mais justo, simples, eficaz e dignificante para todos. Claro que para isso era preciso

haver mais exames, além de melhores programas e de mais formação de professores,

coisas que não parecem interessar minimamente a senhora ministra.

Assim, tudo indica que quando a senhora ministra afirma totalitariamente que ou se aplica

o seu modelo ou não há outro, só pode estar a fazer chantagem, o termo que utiliza para

descrever o comportamento dos sindicatos junto dos professores, como se os professores

fossem idiotas. A verdade é que neste momento já não são os sindicatos a comandar os

professores, mas os professores a empurrar os sindicatos, de tal modo que os próprios

sindicatos já não estão em condições de cumprir o acordo assinado há meses com o

ministério. De nada serve, portanto, ao primeiro-ministro apontar o dedo ao incumprimento

dos sindicatos. Se estes tivessem representado devidamente os professores, nunca teriam

de voltar agora atrás com a palavra. Por isso, não vale a pena recorrer a fantasias e negar

uma realidade muito crua: a insistência do governo no actual modelo está a degradar

como nunca o sistema educativo nacional e a pôr em causa o normal funcionamento das

escolas. E esta ministra ficará seguramente na história como a maior desgraça que se

abateu nos últimos tempos sobre a educação em Portugal. Isso só ainda não é mais

notório porque os efeitos das políticas educativas só se tornam evidentes passados vários

anos. Por isso é arrepiante ver a senhora ministra insistir – contra tudo e contra todos os

que, em Portugal, já alguma vez revelaram interesse pelas questões da educação – numa

teimosia própria de mentes obstinadas e dogmáticas. E é também por isso um imperativo

de justiça desobedecer a esta lei arbitrária e injusta, sobre uma questão de tão grande

importância. Chama-se a isto desobediência civil e foi isso que fizeram em diferentes

circunstâncias Gandi, Luther King, Bertrand Russell e muitas das referências cívicas e

culturais do nosso mundo. É ilegítimo não cumprir a lei, diz a senhora ministra sem se

aperceber que está a ser redundante. Pois é, é ilegítimo não obedecer à senhora ministra,

pois foi ela que fez a lei. Mas terá mesmo de ser.

*Professor titular de Filosofia da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de Portimão

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