Maria de Lurdes Silva
(professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Lisboa)
Uma Escola de excelência
A educabilidade é uma característica exclusivamente humana. E, por este termo, quer-se significar tanto a necessidade como a possibilidade de o ser humano ser educado e educar-se. Esta necessidade do ser humano tem a ver com a natureza inconclusa e imperfeita do homem. Se não for educado, o ser humano não será humano, isto é, não será detentor dos hábitos, usos, costumes, saberes, técnicas, atitudes, valores e sentidos próprios da sua espécie e que identificam cada homem como fazendo parte da humanidade e o distinguem de qualquer outra espécie. A Filosofia e a Antropologia apoiam-nos nestas afirmações.
A possibilidade do ser humano ser educado e educar-se tem também a ver com a natureza inteligente do homem, com o facto de dispor de memória e com a capacidade de comunicar. Nenhum outro ser armazena, codifica, descodifica e comunica informação. É por causa desta natureza, a mais complexa de todas, que o homem pode aprender e ensinar. Aprender é verdadeiramente humano. A história não regista, em qualquer outra espécie, esta capacidade, ou melhor, uma capacidade como esta de invenção, descoberta, inovação, transformação e desenvolvimento.
As sociedades humanas são hoje bem mais complexas do que foram há anos, há séculos atrás. São hoje bem mais sofisticadas, têm produzido artefactos verdadeiramente indescritíveis e até, por vezes, inimagináveis;
e alcançaram um domínio sobre a natureza e sobre a própria vida, como nunca antes tinha acontecido. Estes avanços têm o seu reverso. Mas, em si mesmos, só em si mesmos, são avanços. Isto tem a ver e é explicado exclusivamente pela possibilidade que o ser humano tem de educar-se e ser educado e de avançar, umas vezes mais aos trambolhões, outras vezes menos, de patamar em patamar.
Afirmando-se esta necessidade e esta possibilidade em relação à espécie humana, fica feita tal afirmação para cada indivíduo da espécie.
“O homem não é homem senão pela educação”
Cada ser humano, todas as pessoas têm necessidade e possibilidade de educação. Deste postulado resulta que a educação é um bem, que nenhum ser humano pode dispensar, ou que a nenhum ser humano pode ser negado, se quiser ser homem, verdadeiramente homem; ou, dito ao contrário: “O homem não é homem senão pela educação”; e, por isso, a educação tem que ser dada a todos os homens para que sejam seres humanos.
A universalidade da educação mais não foi do que a transferência, para o domínio do direito e do mundo da lei, deste ponto de vista filosófico e antropológico. Portanto, por causa do ser humano ter necessidade de educação, a educação é, hoje, um Direito Universal; assim mesmo o entendem as Declarações Universais, seja do homem, seja da criança, sejam tratados de ordem internacional…
E até mesmo que isto tenha acontecido há pouco tempo, não deixa de ser uma evidência que o direito à educação é um Direito Universal, de que ninguém pode ser despojado.
Mesmo havendo povos, muitos povos, e milhões de seres humanos que continuam privados deste bem necessário, não podemos deixar de dizer que ele é um bem, que deve e tem de ser considerado um Direito Universal. E daqui resulta uma ideia chave: “Todos têm direito à educação”; e dizendo todos, está a dizer-se cada um, e cada um, e cada um… E cada um, e só cada um é dono desse direito; é um direito de que cada um, ainda que quisesse dele não podia dispor, nem dele podia ser privado. E é por isso que a obrigatoriedade da educação é o corolário destas aquisições civilizacionais; é obrigatório ir à escola para que ninguém se apodere do direito do outro a educar-se e ser educado. Nem sequer um pai pode apropriar-se deste direito do seu filho a ir à escola; nem sequer pode privá-lo de se educar e ser educado. Nem este ou aquele poder se pode sobrepor a este direito e ao cumprimento desta exigência imposta pela própria humanidade.
A inclusão, uma escola inclusiva, é outro dos corolários desta ideia-chave, que culminará nesta outra conquista da nossa civilização que é a gratuitidade da educação como sendo um modo prático de a todos garantir o acesso a um bem sem preço.
A educação é constitutiva do ser humano; mais, é um alicerce das próprias sociedades humanas, é-lhes intrínseca.
A universalidade, a obrigatoriedade, a inclusão e a gratuitidade da educação só se resolvem no quadro da Escola Pública, porque todos os cidadãos são iguais perante o Estado. Apesar de qualquer diferença, de todas as diferenças, é o Estado a única entidade que está em condições de oferecer uma educação com carácter universal; e isto, também, por uma razão prática: nenhuma entidade, seja qual for a sua natureza, nem mesmo que se juntassem todas, dispõe de um saber e de uma rede estendida a todo o território e acessível ao universo daqueles que têm de educar-se e de ser educados. Por outro lado, só o Estado dispõe de poder coercivo bastante para obrigar os pais a mandar os filhos à escola e para os privar do poder que pensam que têm sobre os filhos de os impedir de ir à escola. Ninguém está acima deste poder. E, por isso, o Estado tem o poder de obrigar todas as crianças e todos os jovens a ir à escola.
O Ensino tem de ser da responsabilidade do Estado
Nestes termos, a educação tem que ser gratuita como o ar e a água, como tudo aquilo que faz parte (e nos é necessário) para que possamos ser verdadeiramente humanos. E, por isso, não se pode obrigar ninguém a pagar por uma coisa que é obrigatório ter; e, portanto, só o Estado reúne os meios, de toda a espécie, para oferecer educação nestas condições e para obrigar as crianças e os jovens a dela disporem. É por isso que a Escola tem que ser pública.
E, se mais argumentos não houvesse, bastaria recorrer a um argumento com força histórica: ”A universalização da educação”, como empreendimento intencional e sistemático, acontece ao mesmo tempo que são criados os sistemas de Ensino Público.
O que, no nosso País, aconteceu em meados do século XVIII, e cujo desenvolvimento tem vindo a acompanhar e a impulsionar a escolarização. Penso não errar se afirmar que não há Escola Universal fora dos sistemas públicos de educação e que uma e outros estão de tal maneira associados que é quase impossível separar o conceito de Educação da realização do sistema público da educação. Ao invés, a redução da presença do Estado neste campo foi sempre sinónimo de menos escola e mais atraso. Mas, não basta que o Estado ofereça uma escola pública universal, obrigatória, inclusiva e – mais ou menos – gratuita; a Escola tem de ter qualidade, porque o desenvolvimento das nossas sociedades reclama, hoje, vários níveis de instrução da população, porque isso tem reflexos nos níveis de riqueza e nos níveis de bem-estar de uma sociedade.
A Escola pública tem de ser de qualidade
Mas, atenção: a agenda da Escola, a agenda dos Educadores, não é a agenda do Capitalismo. Aqui – uma Escola de Qualidade – é o lugar, é o ponto onde educação e cultura se encontram. É, por outro lado, o ponto e o lugar onde o professor exerce o seu ofício; e no código ético do ofício do professor está um compromisso com os valores civilizacionais. E estes são: a solidariedade, a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Os valores da competitividade, do individualismo, da violência – e outros que podíamos associar a esta família – fazem parte de outra escola, não da agenda da Escola, não da agenda do educador.
E assumo, com inteira liberdade, o lado em que me encontro: o meu lado não é de uma educação neutra; o meu lado não é de uma educação que não tenha valores; o meu lado é, se quisermos, o lado daqueles revolucionários americanos que, em 1776, escreveram: “Os homens nascem todos iguais em direitos”; o meu lado é o de Rousseau, de Maria Montessori, o de todos aqueles que acham que todos têm direito a educar-se e a serem educados sem opressão. É por isso que afirmo: é por causa de, felizmente, estas ideias estarem a fazer algum caminho, apesar de tantos tropeções, que está a ser hoje difícil à Escola Pública suportar as dificuldades com que está a lutar; mas eu sei, e nós sabemos, que ela vai vencer e que vai sobreviver, porque não há outra instituição criada pela humanidade e pela nossa sociedade capaz de a substituir; e, por isso, ela vai seguramente sobreviver.
E passa por nós, educadores e encarregados de educação, esta luta de todos os dias – seja na sala de aula, seja na sala de professores, seja na rua – por uma Escola pública de qualidade, em que educação e cultura estejam do mesmo lado e sejam partilhadas por professores e alunos e por todos aqueles que a Escola procurar influenciar, para trazer mais bem-estar e mais riqueza à sociedade.