quinta-feira, julho 24, 2008

Boletim do Encontro em Defesa da Escola Pública 3

Maria do Carmo Vieira, Encontro de 19/Abril/2008 CDEP

Maria do Carmo Vieira
(professora de Língua Portuguesa na Escola Secundária Marquês de Pombal – Lisboa)


Uma Experiência Positiva na Aprendizagem da Língua Portuguesa


É com muito prazer que venho a estes Encontros, pois são a possibilidade de manter um debate gratificante sobre situações relativas à Instrução e à Escola Pública, deixando a esperança de que os nossos actos constituam pegadas que outros retomarão a médio ou longo prazo.

Sendo a minha intervenção muito breve, aproveitá-la-ia para relatar uma situação em que foi protagonista um meu aluno, angolano, do Ensino Secundário Nocturno, trabalhador da construção civil. Uma turma, aliás, mosaico de culturas, numa comunhão ucraniana, brasileira, africana e portuguesa. Estudávamos, então, o Romantismo e o escritor Almeida Garrett (1ª metade do século XIX) que foi, precisamente, o introdutor do Romantismo em Portugal. No intuito de os consciencializar da importância do que se herda, foquei o facto de os românticos não terem hostilizado de todo os clássicos, mantendo, por exemplo, entre outros aspectos, o gosto pelas metáforas, nomeadamente a do livro e a da viagem, simbolizando, na cultura clássica, a vida humana. Daí a presença tão regular do livro esculpido sobre as campas de um cemitério, identificando a vida como um livro que se vai escrevendo e folheando até que a morte o feche em definitivo. Também o gosto pelas viagens a Itália, pátria do Renascimento clássico, se incluiu no percurso da maior parte dos artistas românticos.

Schubert, compositor alemão e romântico, que faleceu bastante jovem, num hospício, compôs a sua «Viagem Magnífica», que mais não é do que uma metáfora da vida, no misto de sentimentos que a preenche. Antes de relatar a situação, que me propus, gostaria que ouvissem um pouco do 3º andamento, proposta idêntica à que fiz aos meus alunos, pedindo-lhes que me dissessem, após a audição, o que haviam sentido. É chegado o momento de destacar a intervenção do Emanuel, que pela 1ª vez ouvia música clássica, tendo apontado a nostalgia e a melancolia como sentimentos-chave do extracto da composição ouvido. Uma precisão que foi felicitada e aproveitada para explicar a presença de dois sentimentos em nostalgia, a saudade e a tristeza, num testemunho de perda de algo que se teve, mas que se perdeu no tempo, ainda que se mantenha a recordação. À nostalgia se associa, aliás, a poesia de Fernando Pessoa, na sua constante saudade em sofrimento da infância, «pavorosamente perdida».

No final da aula, o Emanuel pediu-me o CD emprestado para o gravar, confessando-me dias depois que Schubert era agora seu companheiro das horas de almoço e de regresso a casa, pois a sua nostalgia, ainda que fruto de experiência diferente da de Schubert, incluía a saudade sofrida da sua pátria distante, dos familiares que lhe eram queridos e da natureza profundamente ligada à sua infância.

O belo nesta história verídica é a força da arte, o dom que tem de encantar e fazer simultaneamente reflectir. Cumpriram-se, no gesto do Emanuel, os versos do poeta norte-americano, Walt Whitman, referindo o poder de um livro, ou de qualquer obra de arte: «Camarada, isto não é um livro/ Quem isto toca, toca um homem». Um início de amizade que estou certa perdurará no tempo.

O facto de a Escola estar a subestimar a Literatura, em proveito dos Media, dos textos pragmáticos e da publicidade, muitos dos quais de qualidade medíocre, é uma situação que podemos exemplificar, utilizando a frase publicitária «Congela o tempo» e o verso de Ricardo Reis (o médico da heteronímia pessoana) «Cada coisa a seu tempo tem seu tempo». Não será difícil compreender qual dos dois exemplos encerra o carácter profundamente estético da língua e o convite a uma reflexão apaziguadora sobre a velhice, estádio natural a todo o ser humano. A frase publicitária é o exemplo do discurso alienador, a defesa do eternamente jovem, atitude em que nos mentimos e em que somos explorados hipocritamente por terceiros. Pelo contrário, com Ricardo Reis somos levados a encarar sem conflitualidade a passagem do tempo, estando implícito o convite a aproveitar o que cada idade nos oferece, «estação do ano» na metáfora clássica. A Primavera é diferente do Verão, este do Outono e ainda mais distanciado do Inverno. O importante não é fugir da velhice, mas descobri-la e aproveitá-la na sua descoberta.

Actualmente, é a 1ª mensagem que agora se privilegia na Escola e na sociedade globalizante em que vivemos. Por isso, já a pornografia tem entrada no trabalho escolar, como exemplo da linguagem publicitária, através da utilização de pequenos anúncios ilustrados, numa oferta de momentos de Relax, divulgados num jornal de referência diária, «O Diário de Notícias». Este pormenor foi, aliás, a justificação de que se serviu o aluno para apresentar, na sala de aula, o referido trabalho.

Atento a esta situação de apagamento da Cultura esteve o grande maestro e violonista Yehudi Menuhin, ao dirigir, em Fevereiro de 1999, uma carta à Comunidade Europeia, em que lamentava o facto de no seu programa nem uma palavra incidir sobre a necessidade de envolver os cidadãos europeus com a Arte e a Cultura. Menuhin viria a falecer, infelizmente, um mês depois, sem que tivesse obtido uma resposta. É em sua homenagem e porque também «o toco» e me «deixo tocar por ele», recuperando os versos de Whitman, que vos convido a ouvir um extracto da 6ª sinfonia de Tchaikowsky, denominada «Patética», dirigida pelo próprio Menuhin, lendo-vos seguidamente um extracto da carta acima referida:


«É a arte que pode estruturar a personalidade dos jovens cidadãos no sentido da abertura do espírito, do respeito pelo próximo, do desejo de paz.

É a cultura, de facto, que permite a cada pessoa enriquecer-se com o passado para participar na criação do futuro.

Só ela, ao unir a diversidade, nos oferecerá uma verdadeira consciência europeia, porque ela é a inclusão da diversidade das culturas que dá à Europa todo o seu esplendor e que através dos séculos apreende para nós o resto do mundo.

Ignorando de uma forma tão manifestamente cega a cultura, estão a construir uma torre de marfim assente em areias.»


Maria do Carmo Vieira

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