terça-feira, julho 01, 2008

Sobre o Acordo Ortográfico

O pesadelo de Cassandra

(Cláudio Moreno)

Falávamos da nova ortografia; lembrei-me dos gregos. Eles acreditavam que os deuses haviam criado o homem para fugir ao tédio de sua vida infinita, pois lá de cima, do alto do Olimpo, eles observavam os mortais com o mesmo interesse e o mesmo deleite de uma criança diante da jaula dos macacos. Quando lhes dava na divina telha, distribuíam cá embaixo presentes e benesses; quando, no entanto, desaprovavam a conduta de alguém, condenavam o infeliz a castigos horríveis, porque absurdos. Sísifo é condenado a rolar, para sempre, uma pedra morro acima, sabendo - e aí bate o ponto! - que suas forças vão faltar um pouco antes de chegar ao topo; as Danaides vão carregar eternamente os seus cântaros com água, tentando encher um tonel que não tem o fundo; Ocno segue tecendo sua corda de junco, enquanto um asno obstinado vai devorando a outra ponta. São penas duríssimas, mas infernalmente criativas!

A famigerada reforma, no entanto, me lembrou Cassandra, a filha de Príamo, o derradeiro rei de Tróia. Com o poder de persuasão que têm as mulheres bonitas, ela insinuou a Apolo, o deus dos oráculos, que ele a teria em seu leito se lhe concedesse o dom de profetizar o futuro – o que ele se apressou em fazer, com a afobação ingênua que domina as mentes masculinas numa hora como essa. Quando Cassandra, em vez dos beijos e carícias esperados, despediu-se com um simples "obrigado", o deus percebeu – mas que cena mais antiga! - que ela o tinha feito de bobo. Como não podia retirar-lhe o dom concedido, condenou-a, então, a um suplício terrivelmente original: embora ela pudesse prever os acontecimentos futuros, ninguém, absolutamente ninguém iria acreditar nela.

Esse foi o seu inferno em vida. Ela podia ver que o horror se aproximava para tragar todos os seus, mas eles se mantinham indiferentes aos seus avisos Quando Páris, seu irmão, partiu em busca de Helena, Cassandra avisou que a estrangeira traria a ruína de Tróia - mas apenas riram dela e a trataram como louca. Quando os gregos fingiram ter desistido da guerra e deixaram, na planície deserta, o famoso cavalo de madeira, foi em vão que ela alertou os troianos para o perigo que representava levá-lo para dentro dos muros da cidade. Como num pesadelo, ela passava o tempo todo lutando inutilmente para que ouvissem os seus gritos de alerta - tortura ainda mais desesperadora porque ela sabia que este era um sonho no qual ela jamais iria acordar. Apolo estava vingado.

Pois agora, lendo o que vem sendo publicado sobre a reforma ortográfica, acho que entendi todo o drama de Cassandra. Como num pesadelo, vejo brasileiros e portugueses falarem sobre ela com aquela mesma lógica absurda que preside os sonhos. É de enlouquecer! Alguns portugueses se queixam de que, com a reforma, o modo de escrever brasileiro vai prevalecer sobre o lusitano! Uns dizem que os possíveis incômodos são um preço pequeno para as vantagens que ela trará! Outros prevêem um maior poder político para nosso idioma, depois da "unificação"! - eu devo estar ficando louco! O Ministro da Cultura português, José António Pinto Ribeiro, defende as alterações para que possamos ter "uma política internacional comum para a língua" – o que quer que isso signifique! A presidenta da Câmara Brasileira do Livro, Rosely Boschini, acredita que o Acordo deve abrir fronteiras para as editoras nacionais no mercado africano, até agora submetido a Portugal! Carlos Alberto Ribeiro De Xavier (economista e ecólogo, apesar da partícula aristocrática de seu nome) é o funcionário do MEC que fala em nome de nosso governo; segundo ele, não procedem os boatos de que o Acordo acarretará a obsolescência dos livros já editados! - e eu devo estar delirando! O mesmo cidadão (gravem bem o seu nome!) sugere, ainda, talvez com um sorriso irônico, que os que se opõem à reforma talvez queiram perpetuar privilégios políticos... É de fazer bacalhau chorar em porta de venda!

Mas do que estão falando todas essas vozes? Discutem as vantagens, ou as desvantagens, da unificação? Mas que unificação, tia Chica? Hoje, em Portugal, escreve-se assim: "Como noticiámos ontem, o facto mais pitoresco da semana foi o bebé raptado pela hospedeira da Air France. Depois da descolagem, a torre de controlo, avisada por telefonema anónimo, obrigou o piloto a fazer uma aterragem forçada". No Brasil, fica "Como noticiamos ontem, o fato mais pitoresco da semana foi o bebê raptado pela aeromoça da Air France. Depois da decolagem, a torre de controle, avisada por telefonema anônimo, obrigou o piloto a fazer uma aterrissagem forçada". E depois do Acordo, como fica? Pasmem, leitores, mas nada será alterado nessas duas versões - elas serão mantidas assim como estão, tintim por tintim. Ué, e a prometida unificação, onde está? Aguardem, que o assunto dá tanto pano para manga que vamos ter de continuar na próxima coluna.

Zero Hora, Porto Alegre, 21 jun. 2008.

Um comentário:

Carlos Xavier disse...

O que diz hoje em dia o comentarista, sobre essa magéria?