A natureza do modelo de avaliação do desempenho docente
Em estágio permanente, numa “Escola de Projecto”?
Partamos do princípio de que o que se pretende é que todos os alunos atinjam o máximo do seu desenvolvimento em todas as áreas curriculares definidas, respeitando as suas capacidades e ritmos próprios, inseridos num contexto educativo, no qual deverão desenvolver-se todas as aprendizagens.
Obviamente que os resultados obtidos serão variáveis, dentro da própria turma em que cada aluno está inserido, serão variáveis de turma para turma e também de escola para escola.
Para que esses resultados se aproximem, os contextos educativos serão tanto mais essenciais quanto são divergentes os ambientes sócio-económicos, sócio-afectivos e sócio-culturais dos alunos.
A riqueza deste contexto, tão fundamental nos dias de hoje, dependerá das potencialidades consubstanciadas em competência científica e pedagógica, em experiência profissional e visão, bem como em capacidade de trabalho individual e em equipa, disponibilidade e algo que impulsiona todo este processo: a força anímica.
Quem é professor ou educador sabe que é o resultado da interacção de todos estes parâmetros, através da acção comum dos elementos que integram a equipa pedagógica, que dá um produto chamado “resultado da escola”, do grupo ou turma e de cada um dos seus alunos.
Se o conjunto de parâmetros contidos no modelo de avaliação que a nova equipa ministerial pretende institucionalizar – na continuação daquilo que fez a antiga ministra Maria de Lourdes Rodrigues – servem para justificar a pretensão de uma outra qualidade de ensino, incentivando as boas práticas, então estaremos a falar de outra escola, de outras condições de trabalho e de outra formação contínua, consentâneas com a realização desses objectivos.
Assim, a propósito do relatório de autoavaliação de cada docente proposto pelo ME, é explicitado que este deverá contemplar:
- A actividade profissional (Que actividade? A prática pedagógica apenas?)
- O contributo para as metas da escola (Qual medida de referência para esse contributo? Quem definiu essas metas?)
- Elementos essenciais do seu desenvolvimento profissional, no período em avaliação (Quem considera o que é essencial?)
- Reflexão pessoal sobre actividades lectivas e não lectivas
- Certificados de formação contínua (Realizada de acordo com as indicações impostas pelo Director da Escola – antes Presidente do Conselho Executivo – em horário pós-laboral, até às 19 ou 20 horas, ou aos sábados, como tem acontecido?)
- Proposta de formação complementar (Para realizar quando?)
- Este modelo de avaliação supõe também objectivos individuais, fixados de forma facultativa (O que significa “facultativo”, num processo em que só alguns poderão ser considerados “muito bons” professores ou até “excelentes”? Nestas condições, não se torna o “facultativo” obrigatório?)
Continuemos a partir do princípio que este processo de avaliação visa elevar – ou, mesmo, modificar radicalmente – as práticas em muitas escolas, no sentido de lhes imprimir dinâmicas de trabalho em equipa, a partir de projectos específicos, integrando o Plano Anual da Escola no quadro do seu Projecto educativo.
Então, o trabalho de cada docente decorrerá da avaliação do trabalho da sua equipa, em torno de projectos colectivamente assumidos e cuja concretização resultou do trabalho responsável de cada um.
Como partilhar um processo destes, como enriquecer eficazmente as dinâmicas de uma escola, sem ser no quadro da democracia, da cooperação, da discussão livre e sem hierarquias e, depois, na responsabilidade individual exigida a cada um?
Avançar com tais dinâmicas – que, aliás, a experiência da realidade portuguesa mostrou ser possível em muitas escolas, a partir do 25 de Abril – pressupõe a formação contínua de cada docente para acompanhar e incentivar os processos, para ajudar a avaliar, a aferir, a definir as novas metas e a teorizar as suas próprias práticas.
Como concretizar estas dinâmicas, respeitando o actual modelo de avaliação – dependente de um pequeno núcleo de professores ou do director que os nomeia?
Assim, de novo fique em cheque o actual modelo de organização das escolas portuguesas, cada vez mais baseado numa gestão de tipo empresarial (como se os resultados pedagógicos e educativos pudessem ser medidos à peça, no quadro de uma cadeia de comando, a partir do director da escola, subvertendo em particular aquilo que deverá ser o coração da mesma – o seu Conselho Pedagógico).
Um modelo de avaliação do desempenho pressupõe a formação contínua dos docentes. Sempre assim foi. Mas, em que tempos do dia pode ser realizada essa formação? Depois de um horário de trabalho completamente preenchido, ou aos sábados?
Por que não regulamentar um modelo de formação de acordo com o que está contido na Lei de Bases do Sistema Educativo – uma formação contextualizada, orientada pelas instituições do Ensino superior e com tempos próprios cativados no calendário escolar?
O trabalho de cada professor, pressupondo esta dinâmica democrática de partilha entre pares, implicará a garantia de uma estabilidade profissional, acabando com a precariedade de dezenas de milhar de docentes contratados ou pagos a recibo verde por empresas privadas.
Só com os requisitos mencionados nos parece fazer sentido uma avaliação individual, contemplando os parâmetros evocados no modelo que o Governo teima em institucionalizar.
Mesmo assim, por que razão um trabalho individual – decorrente e integrado num trabalho de equipa – há-de ter as classificações de “Muito Bom” ou de “Excelente”, estabelecidas a partir de quotas?
O que definirá um ensino de qualidade? “Indivíduos de excelência” ou “equipas de excelência”?
Os resultados da avaliação denominada “simplex” – imposta pelo Governo na anterior legislatura contra a qual se mobilizaram quase todos os docentes (em conjunto com todas as medidas decretadas contra estes e a Escola Pública, dos horários de trabalho ao modelo de gestão) – já mostrou bem como ela é geradora de enormes injustiças, suspeições entre pares, indignação e mesmo revolta.
A nova ministra da Educação defende este modelo de avaliação docente, com o argumento de que ele “melhora a qualidade do serviço educativo e do desempenho docente”. Contudo, o que se passou no passado ano lectivo – com base num processo de avaliação idêntico – foi a promoção da desmotivação de muitos docentes e em muitas escolas.
Quem está no terreno sabe que a grande maioria dos professores e educadores está habituada a trabalhar horas sem fim, a fazer directas se necessário e a gastar fins-de-semana para realizar projectos em que acredita, nos quais a compensação maior é ver os seus alunos felizes e pensar que com tais práticas estarão a marcar positivamente os seus percursos escolares, quem sabe se para toda a vida.
Estes professores nunca se determinaram por promoções na sua carreira, nunca olharam para o seu umbigo para desenvolver tantas horas de trabalho, nem sequer pensaram que fossem extraordinárias.
Pretender agora nivelar por esses, para impor condições de trabalho e horários muito acima das chamadas “35 horas”, obrigar cada professor a trabalhar com o pensamento na sua avaliação, como se estivesse em estágio permanente – já que é a sua progressão que está em causa, ou mesmo o posto de trabalho, quem sabe – trata-se de uma verdadeira violência contra os docentes. Com a agravante de que esta violência pode mesmo não compensar, já que – para além de quotas e da forma de avaliação – há ainda os contingentes anuais para mudar de escalão, a definir pelo Ministro das Finanças.
Assim, todo o discurso e as belas argumentações sobre boas práticas são a roupagem do Governo para tentar impor a redução dos custos com a Escola Pública e o aumento da precariedade no trabalho docente.
É assim que é mais do que legítimo reconhecer que os docentes estão a defender a Escola Pública, quando exigem um ECD no qual estejam contempladas condições de trabalho aceitáveis, como os horários, a cativação de horários específicos para a formação contínua, uma avaliação justa do seu trabalho e a existência de democracia nas escolas.
Foi para conseguir estes objectivos que quase todos os professores e educadores se mobilizaram nos dois anos lectivos anteriores. Por isso, é mais do que legítima que a posição das organizações sindicais ao recusarem assinar o acordo proposto por esta nova equipa ministerial.
Carmelinda Pereira