segunda-feira, junho 21, 2010

O mito do insucesso das escolas do meio rural


Crianças das escolas com 20 alunos condenadas ao insucesso?

Ao ouvir o Primeiro-ministro e a ministra da Educação falar no insucesso das crianças das escolas do meio rural, sinto a necessidade de contar a minha experiência, na Escola do 1º ciclo do Ensino básico, antiga escola do ensino primário, numa aldeia do concelho de Torres Vedras (Bonabal), entre 1987 e 1990.

Onde é que está provado que qualidade de ensino exige desertificação do país?

No Bonabal eram 25 crianças; no meu primeiro ano de trabalho, assegurei sozinha o processo de aprendizagem de todo o grupo. Nos dois anos seguintes, o então Director escolar do distrito de Lisboa colocou mais outra docente, ficando uma com o grupo das crianças do 1º e 2º anos de escolaridade, e outra com o grupo do 3º e 4º anos.

Insucesso naquela escola, isolamento?

Toda a actividade se desenvolvia a partir dos planos de trabalho que discutíamos com os colegas de mais quatro escolas, nas reuniões quinzenais do Conselho Escolar.

Sim, havia falta de recursos; no entanto, aquelas crianças desenvolveram um processo de aprendizagem, de construção do conhecimento e de aquisição de competências, como nunca tinha conseguido ajudar a realizar no colégio privado e na escola pública por onde já tinha passado. Construíram o seu conhecimento a partir de múltiplas vivências, dando sentido prático aos conteúdos curriculares. Ficaram a saber que os moinhos dos montes de Torres Vedras, em particular os da sua aldeia, constituíram as linhas de defesa contra a ocupação do exército de Napoleão. Explicaram aos seus pais o que eram as Linhas de Torres, encontraram os nomes de família, nos livros da Biblioteca Municipal, onde aliás aprenderam a pesquisar. Comunicaram o resultado deste trabalho, tal como comunicaram dezenas de outros, realizados a partir de projectos, planeados colectivamente, calendarizados, e muitas vezes com o apoio dos pais. Foi assim que foram possíveis múltiplas vistas de estudo: do Museu de História Natural ao Museu Etnográfico, do Museu da Electricidade ao Museu de Marinha, da viagem de metro à televisão, em Lisboa, da fábrica de confecção de vestuário em Torres Vedras, à Adega Cooperativa dos vinhos. Todo o currículo foi trabalhado a partir das vivências, da leitura e da escrita à Matemática.

Podia ver-se – no mapa mensal de registo da leitura e de trabalho de texto – como a leitura foi bem cultivada, sobretudo a partir dos livros que o senhor da carrinha da Gulbenkian trazia, muitas vezes a partir da lista que lhe dávamos, de quinze em quinze dias.

Não havia ainda computador na sala de aula, apenas tínhamos uma máquina de escrever, onde todos escreviam, de acordo com a sua vez, organizada numa lista dos nomes, da responsabilidade de um dos meninos, tal como os outros tinham diferentes tarefas. E foi assim que pôde haver o jornal de textos e de notícias, fotocopiado na Junta de Freguesia, que se institui a correspondência escolar quinzenal, com os meninos da aldeia da Cabeça do Carneiro (Concelho do Alandroal). Foram dois anos de troca de correspondência, colectiva e individual, de elaboração de histórias em conjunto, ao fim dos quais pais e alunos nos encontrámos lá naquela aldeia, e pudemos conhecer o Alandroal, Terena e a realidade de um pedaço do Nordeste Alentejano.

Isolamento ou cooperação?

Cooperação na aldeia, onde as festas eram feitas em conjunto com os pais e os avós.

Cooperação entre os colegas. A partir do Conselho Escolar – com a ajuda da Delegação Escolar e da Autarquia – pusemos de pé um plano de formação para os docentes do 1º ciclo e dos jardins-de-infância do concelho. Não havia créditos. No entanto, era possível juntar – após as aulas, ou em dias previamente determinados – centenas de docentes, desejosos de aprender mais, de trocar as suas próprias experiências. Que o diga o Sérgio Niza, um dos convidados a esses encontros. Que o testemunhem esses meus alunos, que, em grupo, foram apresentar os seus trabalhos a centenas de docentes.

Insucesso?

Daqueles de que ainda não perdi o rasto – e alguns continuaram meus amigos – de entre um tão pequeno grupo de crianças, saiu um engenheiro mecânico, uma licenciada em contabilidade, três professoras, um enfermeiro, um biólogo/investigador (já doutorado).

Esta experiência não é única. Haverá milhares de experiências como esta, por Portugal dentro, por Portugal fora. Que o diga o Movimento da Escola Moderna, que o atestem os milhares de comunicações fabulosas, feitas nos seus congressos; que o digam as pessoas ligadas ao Instituto das Comunidades Educativas, através do projecto “Escolas Rurais”.

Tudo é relativo. Não tenho uma varinha mágica para responder aos graves problemas de insucesso e de desmotivação, ou às múltiplas dificuldades que hoje se vivem nas escolas, agravadas de forma lancinante com a política “educativa” que tem sido desenvolvida.

Mas na minha experiência de trabalho docente – que desenvolvi e ainda desenvolvo com um enorme gosto – posso afirmar que há uma questão essencial para começar a responder aos problemas: chama-se democracia e liberdade de ensinar. Sem ela, as escolas perdem a alma, os professores ficam cansados, esgotados, angustiados e condenados ao individualismo. Um corpo docente assim tratado perde a alegria de viver, de ensinar e de construir. Ora, uma escola não é uma “ fábrica de encher chouriços”. Ela exige uma disponibilidade e uma capacidade criativa que não se compadecem com tais constrangimentos.

A Senhora Ministra da Educação, professora Isabel Alçada, sabe do que falo. Basta lembrar-se do tempo em que começou a escrever livros para motivar os alunos para a leitura, para concluir que é preciso romper com as políticas de subordinação aos especuladores. A escolha será sua.

Caros colegas sindicalistas, caros investigadores e teorizadores de novas práticas: ajudemos a libertar a discussão democrática e fraterna na comunidade educativa. Incentivemos os seus intervenientes a escrever as conclusões a que chegaram e eleger representantes com o mandato de as apresentarem numa Conferência Nacional de Defesa da Escola Pública. Há tanto para dizer, para reaprender! Não seria esta iniciativa um legado extraordinário à Escola Pública e à sociedade em que vivemos?

Carmelinda Pereira

Professora do Ensino Básico – aposentada

Algés, 16 de Junho de 2010

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